Excelente artigo publicado originalmente no site Conjur link, de autoria de Lênio Streck:
Da série “alguém me disse”, recordo-me de minha
primeira causa como advogado na área cível. Era o início da década de
1980. Aceitei-a a pedido de meu professor de Antropologia no curso de
pós-graduação em Sociedade e Cultura na América Latina, Sergio Alves
Teixeira. Ele tinha uma fazendola no interior de Rio Pardo (RS) —
município do qual sou cidadão emérito — e constatou que várias ovelhas
tinham sido devoradas pelos enormes e famintos cachorros do fazendeiro
vizinho. A prova não era boa. Mas tínhamos as carcaças, alguns buracos
na cerca e a certeza de que os cada vez mais gordos cães do fazendeiro
se banqueteavam, à noite, com os indefesos, porém apetitosos, ovinos.
Estudei
a causa com afinco e descobri uma coisa óbvia: no caso de danos
causados por animais, estava-se em face da exceção prevista no Código
Civil de 1916, que, no artigo 1527 previa a inversão do ônus da prova.
Lembro que, no dia da audiência, lá estava o advogado do fazendeiro,
elegantemente vestido de branco, veterano causídico da Comarca, que, de
forma irônica, advertia: “Doutor Lenio, que lástima; uma ação sem provas.”
A segurança da ironia do Doutor quase acabou comigo. Será que algo me
escapara? Meu cliente deve ter tido calafrios, pensando na minha
propalada inépcia.
Abertos os trabalhos, o juiz de Direito, que
depois veio a ser presidente do Tribunal de Justiça, deu a palavra às
partes. O causídico “arrasou” comigo. Onde se viu buscar indenização e
não provar que os cães de seu cliente tinham devorado as ovelhas do
professor Alves Teixeira... Pois o bacharel foi pego no contrapé. Como
não se desvencilhou da inversão do ônus da prova, sua derrota foi
fragorosa. Na saída, verberava contra o Código Civil: “Que absurda essa lei.”
Como ele, um veterano advogado que usava ternos bem cortados, não vira
aquela pequena exceção no entremeio de mais de dois milhares de
dispositivos?
O ônus da prova
Nunca mais esqueci esse julgamento. O ônus da prova. Que coisa é
essa? A quem cabe provar a alegação? Seria a seara civil semelhante à
área penal? Mais tarde, deparei-me, no segundo grau do TJ-RS, com várias
causas em que se alegava no âmbito do processo penal uma espécie de
“inversão do ônus da prova”. Uma famosa tese, muito utilizada no júri,
era a do “álibi não provado, réu culpado”. Era difícil ao réu escapar.
Isso sempre me preocupou. Basta que a acusação prove objetivamente o
tipo, algo similar à prova que fiz “comprovando os danos causados” — no
caso das ovelhas devoradas pelos famintos cachorros do fazendeiro de Rio
Pardo? Ou, efetivamente, haveria (ou há) uma cisão entre Direito Civil e
Direito Penal e entre processo civil e processo penal? E, ainda, quais
seriam os limites dessa cisão ou diferença?
Vasculhando a
dogmática processual penal, leio que Afrânio Silva Jardim, promotor de
Justiça e professor importante do Rio de Janeiro, dizia, lá pelos idos
de 2003, que se o crime é um todo indivisível, somente será legítima a
pretensão punitiva do Estado quando provar que o réu praticou uma
conduta típica, ilícita e culpável. Como fica, desse modo, essa questão
do “ônus da prova” na confrontação com a presunção da inocência e de
outros princípios garantidores? Meu antigo companheiro de ID (Instituto
de Direito) diz que a acusação penal tem o ônus de alegar e provar o
fato típico, tanto no seu aspecto objetivo quanto subjetivo, pois quem
alega fatos no processo penal é a acusação, verbis: “O réu
não formula qualquer pedido no processo penal, tratando-se de ação
condenatória. Não manifesta qualquer pretensão própria. Apenas pode se
opor à pretensão punitiva do Estado, procurando afastar o acolhimento do
pedido do autor. (...) Repita-se: a defesa não manifesta uma verdadeira
pretensão, mas apenas pode se opor à pretensão punitiva do autor. (...)
Sob o prisma processual, somente a acusação é que alega fatos,
atribuindo-os ao réu.” (Afrânio Silva Jardim, in Direito processual penal. 11. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 212-213).
Assim,
por exemplo, se réu apresenta um álibi, dizendo que no dia e hora do
crime se encontrava em lugar distante, não está alegando fato positivo
diverso, mas apenas negando o que lhe é atribuído na denúncia. A dúvida
sobre se ele estava ou não naquele lugar distante nada mais é do que a
dúvida sobre se ele estava no lugar afirmado na denúncia ou queixa. É
intuitivo. Desta maneira, ao sustentar tal álibi, o réu não assume o
ônus de provar fato positivo que negue a acusação, permanecendo o autor
com o ônus de provar aquilo que originalmente afirmou. (Ibid., p. 213).
Por outro lado, é estreme de dúvidas que se o réu conseguir comprovar
seu álibi ele extingue qualquer pretensão punitiva do Estado. Tal
afirmação não pode conduzir ao equivocado entendimento de que se o réu
não comprovar o álibi, a acusação ficaria desincumbida de provar suas
alegações para fins de assegurar a punição do réu.
Sabe-se que o
réu tem o direito de até mesmo nada dizer. O resultado disso nunca será
uma absolvição com conteúdo explicitamente determinado, como por
exemplo, o inciso I do artigo 386, do CPP. Mas, mesmo nada “provando” e a
acusação não comprovar o alegado, a absolvição se encaminha para a
famosa insuficiência de provas.
Mesmo que, nesta quadra da
História, o Estado não mais seja “um inimigo do cidadão”, as questões
relacionadas ao poder punitivo ainda devem ser tratadas de forma,
digamos assim, iluminista. Ou seja, prova não é ordália. O monopólio da
força estatal (legítima) não dispensa esse mesmo Estado — agora, como
diz Dieter Grimm, “Amigo do Cidadão” (forma do Estado Democrático de
Direito que tem o dever de proteger bens jurídicos — Schutzplicht)
de provar, no processo criminal, o alegado. O meu “caso dos devoradores
de ovelhas” viraria pó se fosse resolvido à luz do processo cível. Já
se aplicássemos a “fórmula dos devoradores de ovelhas” ao processo
penal, ninguém escaparia (ou muitos poucos escapariam) da condenação.
“À cause du soleil”
A questão talvez esteja em sabermos se os raciocínios, no tocante à produção da prova e ao respectivo ônus probandi,
são teleológicos ou deontológicos. Ou seja, são esses raciocínios de
âmbito finalístico ou funcionam a partir do código lícito-ilícito? Se
eles são teleológicos, então a formalidade na produção da prova não
assume tanta relevância. Mas, se eles — os raciocínios — são
deontológicos, então, para usar uma frase muito batida, os fins não
justificam os meios. A questão é saber se o processo penal é caminho ou
um atalho para a decisão judicial.
É evidente que a versão de qualquer acusado não pode ser como no livro O Estrangeiro, de Camus, em que o personagem Meursault explica que matou “à cause du soleil”
(por causa do sol). No entanto, uma fantasia qualquer não exime o
Estado de mostrar que a vítima tenha sido morta por uma faca, em
determinadas circunstâncias...
Enfim, se eu não apreendi muito
naquela fria manhã em Rio Pardo, com certeza meu adversário apreendeu
que, no caso de danos causados por animais, o ônus da prova é invertido,
por mais bizarro que isso possa parecer. Algo do tipo “não sou eu quem
tinha de provar que os cães do fazendeiro devoraram as ovelhas do
Catedrático e, sim, era o fazendeiro quem tinha de provar que não foram
os seus gordos e vorazes cães que se banquetearam com os indefesos
ovinos do catedrático”.
Espalhada a notícia na cidade, arrumei
novos clientes. Não nas mesmas circunstâncias, porque, a partir de
então, os fazendeiros passaram a cuidar de seus grandes cachorros (no
Rio Grande do Sul se costuma dizer que “cachorro que come ovelha, só
matando” — na verdade, é um adágio politicamente incorreto, mas, é a voz
do povo). As causas que arrumei eram quase todas criminais. Lá fiz meu
primeiro júri, com meu terno novo, comprado em longas prestações. Fui
indicado para a defesa já na fase da pronúncia. Coisa dura. Homicídio
qualificado por recurso que impossibilitou a defesa da vítima. Meu
cliente fora acusado de atacar a vítima à socapa e à sorrelfa, com uma
pedra na cabeça.
Espiolhei o processo de capa à capa.
Aparentemente, não havia escapatória. A acusação era clara. Na estrada
X, no interior do município de Rio Pardo, o acusado, utilizando-se de
uma pedra, produzira na vítima os ferimentos que a levaram à morte. O
réu, na fase policial, não negou o fato. Claro, sem advogado... Mas,
pelo menos, alegou que batera na vítima em legítima defesa. Em juízo,
negou o fato. Depois de muito folhear os autos do processo, descobri
que, no laudo de necropsia, constava que os pulmões da vítima continham
resíduos encontrados na água, como algas, etc. E como a vítima fora
encontrada, deitada, afastada do açude, o processo teve uma viravolta. O
laudo, não muito bem feito, deixava dúvida da causa mortis, se pela pedra na cabeça ou por afogamento.
Brandindo
o laudo, sustentei que não estava provado que a vítima morrera em face
da pedrada. Aliás, se houvera a pedrada, qual a razão, causa ou
circunstância de a vítima aparecer com os pulmões repletos de
substâncias que indicavam ter morrido de barriga para baixo, na rasa e
suja água das calmas águas do açude mais próximo da estrada? Não teria
havido uma terceira pessoa? Hein? Murmúrios na plateia da Câmara de
Vereadores. Não esqueço a cara de espanto da acusação.
O promotor
de Justiça, na réplica, “veio com tudo”. Alegou que a defesa não provara
nada. E acrescentou: o que importa é que o Ministério Público provou
que a vítima morreu e nas circunstâncias descritas na denúncia. Quem
alega, prova, dizia Sua Excelência. Na tréplica, bati pé na tese de que a
acusação não provara que o meu cliente dera cabo da indigitada vítima. O
promotor me aparteou: “O jovem advogado quer negar a natureza das coisas.” E alfinetou: “Falta só o advogado dizer que a vítima não morreu.” Risos na plateia. Pensei: “Como posso convencer os jurados de que a prova era da acusação e não da defesa?
E me veio a ideia (na verdade, uma epifania) de contar uma historinha
para os jurados.
E sabem qual foi a história? A das ovelhas do professor
Sérgio. Mostrei para os jurados a diferença entre o ônus da prova no
cível e o ônus da prova no crime. Isto é, não era eu quem tinha de
provar que não fora o réu o culpado da morte da pobre da vítima e, sim,
era o Doutor Promotor quem tinha de provar que o meu cliente matara a
vítima e nas circunstâncias apontadas na denúncia. Meu cliente — dativo (pro bono)
— foi absolvido por insuficiência de provas. Saí do júri “por cima da
carne seca”, como se diz naqueles costados da Depressão Central gaúcha
(mais tarde, por incrível que pareça, defendi o mesmo réu — de novo pro bono — por outro homicídio; desta vez foi mais fácil; de todo modo, ele, de novo, estava na hora errada no lugar errado).
Dias destes, rebuscando velhos papéis, deparei-me com minhas velhas colunas que escrevia, à época, para o Jornal de Rio Pardo
(que ainda existe). E alguns apontamentos sobre o ônus da prova. Claro
que isso aconteceu no início da década de 1980, bem antes da
Constituição. Talvez por isso eu tenha me dedicado a estudar essa
Constituição. Tendo, por vezes, acentuado o meu grau de misantropia,
cada vez mais gosto da máxima de que “a Constituição é um remédio contra
maiorias”. Como é bela essa máxima.
Mensalão
“Mas, o que isso tem a ver com o mensalão?” — pergunta-me, por email, o advogado de Rio Pardo, com o qual recordei o case
dos ovinos objetos da janta dos cães. Sim, porque qualquer coisa que
ora se escreve sempre terá alguma relação com o tema da moda. Respondi
(e respondo aqui na coluna): na verdade, tudo e nada. Em uma visão
hermenêutica do processo penal, se exigimos das decisões judiciais
coerência e integridade, parece razoável exigir o mesmo da versão
defensiva do réu. Não é seu o ônus da prova. Entretanto, na sua defesa
ele “não pode dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa”. Diz um
provérbio indiano: “Quando falares, cuida para que tuas palavras sejam
melhores que o silêncio.” Se ele tem o direito de permanecer calado, no
momento em que opta por se defender a partir de uma versão, acende-se a
luz da construção da “versão dos autos”, que tem, aí, o seu começo.
Isto
é, parece claro que a versão de qualquer acusado não pode ser do tipo
“matei por causa do sol” (ou porque o sol bateu na faca). Dito de outro
modo: a “questão” não se resume a “provar o alegado ou não provar o
alegado...”. O busiles da questão é a probabilidade do que se
alegou. No caso do “mensalão” — apenas para exemplificar, porque estou
tratando do “caso dos devoradores de ovelhas” e do meu primeiro júri —
algumas versões de acusados não se mostraram mais plausíveis do que o
argumento do personagem de Albert Camus. Veja-se, por exemplo, o
impacto, no plano simbólico da construção da verdade do processo, a
afirmação de que o saque de R$ 50 mil o fora para pagar... a TV a cabo!
Uau! Perdão, mas... quem disse para ele que alguém poderia acreditar
nisso?
Cornelius Castoriadis, na grande obra A Instituição Imaginária da Sociedade,
fazendo uma análise quase lacaniana, fala-nos do “magma de
significações” através do qual interpretamos a realidade, entendida como
construção simbólica. Nem tudo é simbólico; mas, diz o mestre
greco-francês, nada existe fora de uma rede simbólica. Esse detalhe
parece ter sido esquecido pelo réu quando da construção de sua versão.
Deveria ter lido Castoriadis. Talvez as categorias do pensamento moderno
não sirvam para postular a dimensão criadora do que queria dizer o
acusado, porque foram elaboradas para pensar a identidade e a
permanência. Enfim, não sei se o velho Castoriadis teria mesmo algo a
ver com isso... O que importa é que a versão do réu bateu na trave (do
imaginário). Assim como tantas outras versões, não é verdade?
Quero
dizer: no plano de uma teoria garantista, não há dúvidas de que o réu
não tem o ônus da prova para demonstração de um álibi (ou de sua versão
para os fatos que lhe são antepostos). Mas a sua versão — se optou por
apresentar uma — deve, pelo menos, fazer sentido... sob pena de ser
engolido pelo “magma”. Algumas fantasias colocadas na boca do acusado
podem ser “mortais”, como o argumento do matador no romance de Camus,
embora, registre-se, ele tenha sido condenado por outra razão: a de ter
ido ao enterro da mãe e não ter chorado (veja-se, novamente, a famosa
“livre convicção” e quão perigosa ela é...!).
O que há no ar?
O que resta de tudo isso e que será objeto de outra coluna? O
julgamento do mensalão ensejará um repensar nas atividades jurídicas de terrae brasilis.
À jusante e à montante. Há uma crise paradigmática do e no Direito.
Fomos deixando a crise se agravar... e agravar. De há muito venho
alertando para o fato de que o Direito deve ser estudado para além da
retórica e de excertos de livros do tipo Introdução à Lógica,
de Irving Copi, mormente na parte em que “ensina” o uso das falácias...
Ou de livros “simplificadores” do Direito. A dogmática jurídica
tradicional (senso comum teórico) muito há de pagar por tudo o que está
acontecendo e o que vai acontecer. Direito não é um conjunto de falácias
bem (ou mal) colocadas. Temos de falar sobre isso.
Urgentemente. Assim
como no livro “Precisamos Falar sobre o Kevin”, de Lionel
Schriver, em que o adolescente praticou uma chacina e seus pais só se
deram conta tardiamente, penso que também precisamos falar sobre o
“Direito brasileiro” e sua “crise paradigmática”...! Tenho medo tanto da
“retórica pela retórica”, com frases do tipo “os autos falam por si”,
“a acusação mente, é inepta” e recitação de músicas de Chico Buarque,
como também tenho receio de frases (ou enunciados) do tipo “é possível
dar certa elasticidade em matéria de prova no processo penal”. E
sabem por que? Porque tenho medo que, ao fim e ao cabo, terminado o
julgamento, “sobre para a patuleia”, com juízes e promotores lançando
mão de máximas como essa da “elasticidade”. Quais os limites da
“elasticidade”?
Quem segura a “semântica” das palavras? Arrepia-me
também o constante apelo a enunciados performativos como “livre
apreciação da prova”, “verdade real” e “livre convencimento”. Posso
estar sendo chato, conservador, mas, permito-me indagar — até
porque não necessito agradar a ninguém: na democracia ainda é possível
falar em “livre apreciação da prova”? “Livre” de que? Como a Escola do
Direito Livre (final do século XIX, em França), em que “livre” era para
dizer “livre da lei”? Ali, em França, é bem verdade, isso tinha sentido,
porque o “inimigo” era a Escola da Exegese. Enfim, lanço, aqui, minhas
preocupações, especialmente para o futuro.
De todo modo, tudo, mas tudo
mesmo, está a indicar que há algo de novo no ar no Direito brasileiro.
Para além dos — apertadíssimos e desconfortáveis — aviões que ligam
Brasília ao resto do Brasil, há algo de novo no ar... Ah, isso há... Por
isso, “precisamos falar sobre o Direito”. Como no poema de Eráclio
Zepeda, “quando as águas da enchente descem e cobrem a tudo e a
todos, é porque de há muito começou a chover na serra. Nós é que não nos
demos conta”.
Ou, ainda, outra metáfora que pode nos ajudar a
entender o estado da arte da problemática que vivemos: o jurista
brasileiro não pode se comportar como o sujeito que, estando o Vesúvio
prestes a entrar em erupção, ao invés de se proteger, fica ajeitando o
quadro de Van Gogh na parede.
Vamos falar sobre isso? Neste momento, digo apenas I rest my case!
Lenio Luiz Streck é procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em Direito.