quinta-feira, 1 de novembro de 2012

O caso dos devoradores de ovelhas e o ônus da prova

Excelente artigo publicado originalmente no site Conjur link, de autoria de Lênio Streck:

Da série “alguém me disse”, recordo-me de minha primeira causa como advogado na área cível. Era o início da década de 1980. Aceitei-a a pedido de meu professor de Antropologia no curso de pós-graduação em Sociedade e Cultura na América Latina, Sergio Alves Teixeira. Ele tinha uma fazendola no interior de Rio Pardo (RS) — município do qual sou cidadão emérito — e constatou que várias ovelhas tinham sido devoradas pelos enormes e famintos cachorros do fazendeiro vizinho. A prova não era boa. Mas tínhamos as carcaças, alguns buracos na cerca e a certeza de que os cada vez mais gordos cães do fazendeiro se banqueteavam, à noite, com os indefesos, porém apetitosos, ovinos.

Estudei a causa com afinco e descobri uma coisa óbvia: no caso de danos causados por animais, estava-se em face da exceção prevista no Código Civil de 1916, que, no artigo 1527 previa a inversão do ônus da prova. Lembro que, no dia da audiência, lá estava o advogado do fazendeiro, elegantemente vestido de branco, veterano causídico da Comarca, que, de forma irônica, advertia: “Doutor Lenio, que lástima; uma ação sem provas.” A segurança da ironia do Doutor quase acabou comigo. Será que algo me escapara? Meu cliente deve ter tido calafrios, pensando na minha propalada inépcia.

Abertos os trabalhos, o juiz de Direito, que depois veio a ser presidente do Tribunal de Justiça, deu a palavra às partes. O causídico “arrasou” comigo. Onde se viu buscar indenização e não provar que os cães de seu cliente tinham devorado as ovelhas do professor Alves Teixeira... Pois o bacharel foi pego no contrapé. Como não se desvencilhou da inversão do ônus da prova, sua derrota foi fragorosa. Na saída, verberava contra o Código Civil: “Que absurda essa lei.” Como ele, um veterano advogado que usava ternos bem cortados, não vira aquela pequena exceção no entremeio de mais de dois milhares de dispositivos?

O ônus da prova

Nunca mais esqueci esse julgamento. O ônus da prova. Que coisa é essa? A quem cabe provar a alegação? Seria a seara civil semelhante à área penal? Mais tarde, deparei-me, no segundo grau do TJ-RS, com várias causas em que se alegava no âmbito do processo penal uma espécie de “inversão do ônus da prova”. Uma famosa tese, muito utilizada no júri, era a do “álibi não provado, réu culpado”. Era difícil ao réu escapar. Isso sempre me preocupou. Basta que a acusação prove objetivamente o tipo, algo similar à prova que fiz “comprovando os danos causados” — no caso das ovelhas devoradas pelos famintos cachorros do fazendeiro de Rio Pardo? Ou, efetivamente, haveria (ou há) uma cisão entre Direito Civil e Direito Penal e entre processo civil e processo penal? E, ainda, quais seriam os limites dessa cisão ou diferença?

Vasculhando a dogmática processual penal, leio que Afrânio Silva Jardim, promotor de Justiça e professor importante do Rio de Janeiro, dizia, lá pelos idos de 2003, que se o crime é um todo indivisível, somente será legítima a pretensão punitiva do Estado quando provar que o réu praticou uma conduta típica, ilícita e culpável. Como fica, desse modo, essa questão do “ônus da prova” na confrontação com a presunção da inocência e de outros princípios garantidores? Meu antigo companheiro de ID (Instituto de Direito) diz que a acusação penal tem o ônus de alegar e provar o fato típico, tanto no seu aspecto objetivo quanto subjetivo, pois quem alega fatos no processo penal é a acusação, verbis: “O réu não formula qualquer pedido no processo penal, tratando-se de ação condenatória. Não manifesta qualquer pretensão própria. Apenas pode se opor à pretensão punitiva do Estado, procurando afastar o acolhimento do pedido do autor. (...) Repita-se: a defesa não manifesta uma verdadeira pretensão, mas apenas pode se opor à pretensão punitiva do autor. (...) Sob o prisma processual, somente a acusação é que alega fatos, atribuindo-os ao réu.” (Afrânio Silva Jardim, in Direito processual penal. 11. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 212-213).

Assim, por exemplo, se réu apresenta um álibi, dizendo que no dia e hora do crime se encontrava em lugar distante, não está alegando fato positivo diverso, mas apenas negando o que lhe é atribuído na denúncia. A dúvida sobre se ele estava ou não naquele lugar distante nada mais é do que a dúvida sobre se ele estava no lugar afirmado na denúncia ou queixa. É intuitivo. Desta maneira, ao sustentar tal álibi, o réu não assume o ônus de provar fato positivo que negue a acusação, permanecendo o autor com o ônus de provar aquilo que originalmente afirmou. (Ibid., p. 213). Por outro lado, é estreme de dúvidas que se o réu conseguir comprovar seu álibi ele extingue qualquer pretensão punitiva do Estado. Tal afirmação não pode conduzir ao equivocado entendimento de que se o réu não comprovar o álibi, a acusação ficaria desincumbida de provar suas alegações para fins de assegurar a punição do réu.

Sabe-se que o réu tem o direito de até mesmo nada dizer. O resultado disso nunca será uma absolvição com conteúdo explicitamente determinado, como por exemplo, o inciso I do artigo 386, do CPP. Mas, mesmo nada “provando” e a acusação não comprovar o alegado, a absolvição se encaminha para a famosa insuficiência de provas.
Mesmo que, nesta quadra da História, o Estado não mais seja “um inimigo do cidadão”, as questões relacionadas ao poder punitivo ainda devem ser tratadas de forma, digamos assim, iluminista. Ou seja, prova não é ordália. O monopólio da força estatal (legítima) não dispensa esse mesmo Estado — agora, como diz Dieter Grimm, “Amigo do Cidadão” (forma do Estado Democrático de Direito que tem o dever de proteger bens jurídicos — Schutzplicht) de provar, no processo criminal, o alegado. O meu “caso dos devoradores de ovelhas” viraria pó se fosse resolvido à luz do processo cível. Já se aplicássemos a “fórmula dos devoradores de ovelhas” ao processo penal, ninguém escaparia (ou muitos poucos escapariam) da condenação.
“À cause du soleil
A questão talvez esteja em sabermos se os raciocínios, no tocante à produção da prova e ao respectivo ônus probandi, são teleológicos ou deontológicos. Ou seja, são esses raciocínios de âmbito finalístico ou funcionam a partir do código lícito-ilícito? Se eles são teleológicos, então a formalidade na produção da prova não assume tanta relevância. Mas, se eles — os raciocínios — são deontológicos, então, para usar uma frase muito batida, os fins não justificam os meios. A questão é saber se o processo penal é caminho ou um atalho para a decisão judicial.

É evidente que a versão de qualquer acusado não pode ser como no livro O Estrangeiro, de Camus, em que o personagem Meursault explica que matou “à cause du soleil” (por causa do sol). No entanto, uma fantasia qualquer não exime o Estado de mostrar que a vítima tenha sido morta por uma faca, em determinadas circunstâncias...

Enfim, se eu não apreendi muito naquela fria manhã em Rio Pardo, com certeza meu adversário apreendeu que, no caso de danos causados por animais, o ônus da prova é invertido, por mais bizarro que isso possa parecer. Algo do tipo “não sou eu quem tinha de provar que os cães do fazendeiro devoraram as ovelhas do Catedrático e, sim, era o fazendeiro quem tinha de provar que não foram os seus gordos e vorazes cães que se banquetearam com os indefesos ovinos do catedrático”.

Espalhada a notícia na cidade, arrumei novos clientes. Não nas mesmas circunstâncias, porque, a partir de então, os fazendeiros passaram a cuidar de seus grandes cachorros (no Rio Grande do Sul se costuma dizer que “cachorro que come ovelha, só matando” — na verdade, é um adágio politicamente incorreto, mas, é a voz do povo). As causas que arrumei eram quase todas criminais. Lá fiz meu primeiro júri, com meu terno novo, comprado em longas prestações. Fui indicado para a defesa já na fase da pronúncia. Coisa dura. Homicídio qualificado por recurso que impossibilitou a defesa da vítima. Meu cliente fora acusado de atacar a vítima à socapa e à sorrelfa, com uma pedra na cabeça.

Espiolhei o processo de capa à capa. Aparentemente, não havia escapatória. A acusação era clara. Na estrada X, no interior do município de Rio Pardo, o acusado, utilizando-se de uma pedra, produzira na vítima os ferimentos que a levaram à morte. O réu, na fase policial, não negou o fato. Claro, sem advogado... Mas, pelo menos, alegou que batera na vítima em legítima defesa. Em juízo, negou o fato. Depois de muito folhear os autos do processo, descobri que, no laudo de necropsia, constava que os pulmões da vítima continham resíduos encontrados na água, como algas, etc. E como a vítima fora encontrada, deitada, afastada do açude, o processo teve uma viravolta. O laudo, não muito bem feito, deixava dúvida da causa mortis, se pela pedra na cabeça ou por afogamento.
Brandindo o laudo, sustentei que não estava provado que a vítima morrera em face da pedrada. Aliás, se houvera a pedrada, qual a razão, causa ou circunstância de a vítima aparecer com os pulmões repletos de substâncias que indicavam ter morrido de barriga para baixo, na rasa e suja água das calmas águas do açude mais próximo da estrada? Não teria havido uma terceira pessoa? Hein? Murmúrios na plateia da Câmara de Vereadores. Não esqueço a cara de espanto da acusação.
O promotor de Justiça, na réplica, “veio com tudo”. Alegou que a defesa não provara nada. E acrescentou: o que importa é que o Ministério Público provou que a vítima morreu e nas circunstâncias descritas na denúncia. Quem alega, prova, dizia Sua Excelência. Na tréplica, bati pé na tese de que a acusação não provara que o meu cliente dera cabo da indigitada vítima. O promotor me aparteou: “O jovem advogado quer negar a natureza das coisas.” E alfinetou: “Falta só o advogado dizer que a vítima não morreu.” Risos na plateia. Pensei: “Como posso convencer os jurados de que a prova era da acusação e não da defesa? E me veio a ideia (na verdade, uma epifania) de contar uma historinha para os jurados.

E sabem qual foi a história? A das ovelhas do professor Sérgio. Mostrei para os jurados a diferença entre o ônus da prova no cível e o ônus da prova no crime. Isto é, não era eu quem tinha de provar que não fora o réu o culpado da morte da pobre da vítima e, sim, era o Doutor Promotor quem tinha de provar que o meu cliente matara a vítima e nas circunstâncias apontadas na denúncia. Meu cliente — dativo (pro bono) — foi absolvido por insuficiência de provas. Saí do júri “por cima da carne seca”, como se diz naqueles costados da Depressão Central gaúcha (mais tarde, por incrível que pareça, defendi o mesmo réu — de novo pro bono — por outro homicídio; desta vez foi mais fácil; de todo modo, ele, de novo, estava na hora errada no lugar errado).

Dias destes, rebuscando velhos papéis, deparei-me com minhas velhas colunas que escrevia, à época, para o Jornal de Rio Pardo (que ainda existe). E alguns apontamentos sobre o ônus da prova. Claro que isso aconteceu no início da década de 1980, bem antes da Constituição. Talvez por isso eu tenha me dedicado a estudar essa Constituição. Tendo, por vezes, acentuado o meu grau de misantropia, cada vez mais gosto da máxima de que “a Constituição é um remédio contra maiorias”. Como é bela essa máxima.

Mensalão

“Mas, o que isso tem a ver com o mensalão?” — pergunta-me, por email, o advogado de Rio Pardo, com o qual recordei o case dos ovinos objetos da janta dos cães. Sim, porque qualquer coisa que ora se escreve sempre terá alguma relação com o tema da moda. Respondi (e respondo aqui na coluna): na verdade, tudo e nada. Em uma visão hermenêutica do processo penal, se exigimos das decisões judiciais coerência e integridade, parece razoável exigir o mesmo da versão defensiva do réu. Não é seu o ônus da prova. Entretanto, na sua defesa ele “não pode dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa”. Diz um provérbio indiano: “Quando falares, cuida para que tuas palavras sejam melhores que o silêncio.” Se ele tem o direito de permanecer calado, no momento em que opta por se defender a partir de uma versão, acende-se a luz da construção da “versão dos autos”, que tem, aí, o seu começo.

Isto é, parece claro que a versão de qualquer acusado não pode ser do tipo “matei por causa do sol” (ou porque o sol bateu na faca). Dito de outro modo: a “questão” não se resume a “provar o alegado ou não provar o alegado...”. O busiles da questão é a probabilidade do que se alegou. No caso do “mensalão” — apenas para exemplificar, porque estou tratando do “caso dos devoradores de ovelhas” e do meu primeiro júri — algumas versões de acusados não se mostraram mais plausíveis do que o argumento do personagem de Albert Camus. Veja-se, por exemplo, o impacto, no plano simbólico da construção da verdade do processo, a afirmação de que o saque de R$ 50 mil o fora para pagar... a TV a cabo! Uau! Perdão, mas... quem disse para ele que alguém poderia acreditar nisso?

Cornelius Castoriadis, na grande obra A Instituição Imaginária da Sociedade, fazendo uma análise quase lacaniana, fala-nos do “magma de significações” através do qual interpretamos a realidade, entendida como construção simbólica. Nem tudo é simbólico; mas, diz o mestre greco-francês, nada existe fora de uma rede simbólica. Esse detalhe parece ter sido esquecido pelo réu quando da construção de sua versão. Deveria ter lido Castoriadis. Talvez as categorias do pensamento moderno não sirvam para postular a dimensão criadora do que queria dizer o acusado, porque foram elaboradas para pensar a identidade e a permanência. Enfim, não sei se o velho Castoriadis teria mesmo algo a ver com isso... O que importa é que a versão do réu bateu na trave (do imaginário). Assim como tantas outras versões, não é verdade?

Quero dizer: no plano de uma teoria garantista, não há dúvidas de que o réu não tem o ônus da prova para demonstração de um álibi (ou de sua versão para os fatos que lhe são antepostos). Mas a sua versão — se optou por apresentar uma — deve, pelo menos, fazer sentido... sob pena de ser engolido pelo “magma”. Algumas fantasias colocadas na boca do acusado podem ser “mortais”, como o argumento do matador no romance de Camus, embora, registre-se, ele tenha sido condenado por outra razão: a de ter ido ao enterro da mãe e não ter chorado (veja-se, novamente, a famosa “livre convicção” e quão perigosa ela é...!).

O que há no ar?

O que resta de tudo isso e que será objeto de outra coluna? O julgamento do mensalão ensejará um repensar nas atividades jurídicas de terrae brasilis. À jusante e à montante. Há uma crise paradigmática do e no Direito. Fomos deixando a crise se agravar... e agravar. De há muito venho alertando para o fato de que o Direito deve ser estudado para além da retórica e de excertos de livros do tipo Introdução à Lógica, de Irving Copi, mormente na parte em que “ensina” o uso das falácias... Ou de livros “simplificadores” do Direito. A dogmática jurídica tradicional (senso comum teórico) muito há de pagar por tudo o que está acontecendo e o que vai acontecer. Direito não é um conjunto de falácias bem (ou mal) colocadas. Temos de falar sobre isso.

Urgentemente. Assim como no livro “Precisamos Falar sobre o Kevin”, de Lionel Schriver, em que o adolescente praticou uma chacina e seus pais só se deram conta tardiamente, penso que também precisamos falar sobre o “Direito brasileiro” e sua “crise paradigmática”...! Tenho medo tanto da “retórica pela retórica”, com frases do tipo “os autos falam por si”, “a acusação mente, é inepta” e recitação de músicas de Chico Buarque, como também tenho receio de frases (ou enunciados) do tipo “é possível dar certa elasticidade em matéria de prova no processo penal”. E sabem por que? Porque tenho medo que, ao fim e ao cabo, terminado o julgamento, “sobre para a patuleia”, com juízes e promotores lançando mão de máximas como essa da “elasticidade”. Quais os limites da “elasticidade”? 

Quem segura a “semântica” das palavras? Arrepia-me também o constante apelo a enunciados performativos como “livre apreciação da prova”, “verdade real” e “livre convencimento”. Posso estar sendo chato, conservador, mas, permito-me indagar — até porque não necessito agradar a ninguém: na democracia ainda é possível falar em “livre apreciação da prova”? “Livre” de que? Como a Escola do Direito Livre (final do século XIX, em França), em que “livre” era para dizer “livre da lei”? Ali, em França, é bem verdade, isso tinha sentido, porque o “inimigo” era a Escola da Exegese. Enfim, lanço, aqui, minhas preocupações, especialmente para o futuro.

De todo modo, tudo, mas tudo mesmo, está a indicar que há algo de novo no ar no Direito brasileiro. Para além dos — apertadíssimos e desconfortáveis — aviões que ligam Brasília ao resto do Brasil, há algo de novo no ar... Ah, isso há... Por isso, “precisamos falar sobre o Direito”. Como no poema de Eráclio Zepeda, “quando as águas da enchente descem e cobrem a tudo e a todos, é porque de há muito começou a chover na serra. Nós é que não nos demos conta”.

Ou, ainda, outra metáfora que pode nos ajudar a entender o estado da arte da problemática que vivemos: o jurista brasileiro não pode se comportar como o sujeito que, estando o Vesúvio prestes a entrar em erupção, ao invés de se proteger, fica ajeitando o quadro de Van Gogh na parede.

Vamos falar sobre isso? Neste momento, digo apenas I rest my case!

Lenio Luiz Streck é procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em Direito.

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